Os riscos e dificuldades de cruzar a pior estrada federal do país, localizada no coração da Floresta Amazônica: a BR-319

Texto e fotos: Guga Dias

Rodovia fantasma – BR-319

Muitos motociclistas reclamam das péssimas condições das estradas brasileiras, o que é legítimo, pois são quilômetros de buracos, remendos e falta de sinalização. No entanto, resolvi ir além e enfrentar a BR-319, conhecida como “Rodovia Fantasma”, tamanho é o grau de seu abandono e isolamento. Ciente das dificuldades, concentrei-me mais no fato de viajar com minha esposa na garupa do que, necessariamente, na superação de cruzar a Floresta Amazônica de moto.

PLANO DE VIAGEM

É rotineiro levar de seis a oito meses estudando um roteiro, os mapas e os pontos turísticos que visitaremos ao longo de uma viagem. E para essa aventura, não foi diferente. Assim, detectamos dois principais gargalos da expedição: chegar e sair de Manaus (AM).

Fosse via porto de Belém (PA) ou Santarém (PA), uma hora seria preciso embarcarmos com a moto em um barco e navegar pelo Rio Amazonas e seus afluentes. Optamos por embarcar em Belém para uma viagem de seis dias rio acima.

BARCO

As acomodações no barco deixam muito a desejar, esteja você viajando em uma rede ou em camarote. Porém, conforto é algo que curtimos em casa: o jeito foi aproveitar o incrível cenário e as histórias de figuras pitorescas que conhecemos a bordo. Depois de seis dias de navegação e cinco dias com turismo e manutenção da moto em Manaus, era chegada a hora de percorrer a BR-319, a Rodovia Fantasma, que segue por 890 km até Porto Velho e possui mais de 400 km em meio ao nada.

BR-319

O estudo para percorrer a BR-319 contou com informações de vários amigos, pois há muitos malucos que percorreram esta estrada e postaram seus dramas em filmes (muitas vezes, desesperadores). Por exemplo: um casal de colombianos que cometeu o grave erro de percorrer a 319 na época das chuvas, que se estendem de janeiro ao final de julho – os planos de cruzarem em quatro dias se estenderam por duas semanas e meia.

Cientes dessas agruras, seguimos viagem. A BR-319 é a única rodovia que liga Manaus ao resto do Brasil e foi construída ainda na década de 1960.

Conta a história que coronéis e barqueiros contrataram jagunços para destruir a rodovia, o que foi feito ao longo de dez anos. Na base de enxada, o asfalto foi arrancado; na base do fogo e da dinamite, pontes foram destruídas; e o resto a floresta tomou para si…

Além disso, às margens da BR-319 há inúmeros igarapés que transbordam – e quando as águas se vão, deixam bancos de areia e um cenário insólito, que nos faz pensar em como uma areia branca de praia surgiu no meio da Floresta Amazônica.

NA ESTRADA

Antes de encaramos a estrada passamos em um supermercado para comprar mantimentos. Tão logo cruzamos o “Encontro das Águas” entre o Rio Negro e Solimões, estávamos diante da placa da BR-319, que informava a direção rumo a Porto Velho.

Os 200 km seguintes foram feitos em asfalto, que nos acompanhou até depois da cidade de Castanho, onde completamos o tanque e compramos três garrafas “pet” de 2 litros, cada, com gasolina. Tínhamos cerca de 480 km pela frente e 28 litros de combustível. Se a média de consumo ficasse na casa dos 17 km/l, nossa V-Strom 650cc chegaria a tempo de novo abastecimento.

Passando de Castanho, o asfalto sumiu e um longo trecho de barro compactado pelas máquinas do Exército surgiu. Por sorte não chovera nos últimos dias e a lama estava seca – porém, sem muita margem para velocidade acima dos 50 km/h, já que qualquer deslize literalmente nos levaria ao chão.

A BR-319 não é uma estrada para se fazer com uma moto como a 650cc, aro 19, cerca de 60 kg de bagagem e garupa, mas estávamos prontos para o desafio (e sabíamos que não seria nada fácil!).

Com esta certeza em mente, conseguimos percorrer, no primeiro dia, cerca de 280 km até o povoado de Igapó Açu, que fica às margens de um afluente do Rio Madeira, aonde a travessia (ao custo de R$ 10,00) é feita por meio de uma plataforma rebocada por uma embarcação que demora um pouco para ligar.

Do outro lado do rio, o vilarejo (isolado do mundo) não se estende por mais de 100 metros e conta com menos de 70 moradores (entre crianças, adultos e idosos).

A rampa da balsa passa ao lado do Restaurante e Pousada da Dona Mocinha, uma simpática anfitriã, que recebe a todos de braços abertos. Sem luxo algum, a diária para o casal custou meros R$ 30,00 (com banho à parte, que saia por R$ 2,50). Já que tínhamos pão e atum, entre outras coisas, jantamos no quarto e, pouco depois, testemunhamos um forte temporal na região.

De manhã, cogitamos ficar mais um dia na pousada, na esperança de que o solo secasse e nossa viagem pudesse continuar. Mas um céu azul distante nos chamou para a estrada e partimos cheios de esperança de conseguir atravessar a floresta naquele mesmo dia – e desfrutar, à noite, de um bom banho quente em Humaitá (AM), a 450 km de distância dali.

TOMBOS

Com pouco tempo de estrada – se é que assim podemos chamar uma faixa de asfalto com pouco mais de um metro de largura, além de repleta de buracos e lama –, cruzamos com dois motociclistas que vinham de Porto Velho, ambos em motos de 250cc e com mochilas nas costas. Eles nos acharam loucos por tentarmos percorrer a BR-319 pilotando uma Suzuki V-Strom 650cc com garupa e bagagens.

Conversamos com a dupla, rimos e seguimos viagem. Porém, logo veio o primeiro tombo, ocasionado por baixa velocidade e uma roda dianteira que deslizou na lama.

Rapidamente soltei os baús da moto e, em uma alavancada só, coloquei-a de pé e me deitei, exausto. A Floresta Amazônica, apesar de úmida, é muito quente – e o esforço de pilotar naquele tipo de estrada começava a cobrar seu preço, principalmente, na forma de cãibras.

TRAVESSIAS

Continuamos na estrada e cruzamos com pontes de madeiras nas mais assombrosas condições. Feitas de toras de árvores e tábuas, muitas apresentavam enormes buracos e pregos expostos. Sem contar aquelas que não tinham rampas de descida no lado oposto.

O cerimonial consistia em parar a moto, descer e cruzar a ponte a pé, preferencialmente, pulando (para identificar os pontos firmes e se certificando de que, do outro lado, havia como descer), para, então, passar com a moto, sem garupa e em primeira marcha. Isto se repetiu aproximadamente 125 vezes.

Com o fim da tarde se aproximando, era quase inacreditável constatar que levamos o dia inteiro para percorrer míseros 80 km. E este esforço todo se refletiu em mais um tombo! Levantar a moto acabou com nossa energia, mas, por sorte, em pouco mais de 5 km (percorridos em meia hora), chegamos a mais uma torre da Embratel – uma dica: quem for percorrer a BR-319 poderá contar com um porto seguro a cada 40 km, em média: são “elas”, as torres da Embratel, retransmissoras de sinais, que oferecem abrigo (já que seu entorno é cercado).

Naquela primeira noite na selva, encontramos a Torre Aristóteles aberta e com funcionários responsáveis pela manutenção de saída, que nos autorizaram a pernoitar ali. O jantar, mais uma vez, foi pão com atum (e de sobremesa, bolo de laranja).

DESGASTE

No dia seguinte, saímos cedo – e ao passarmos por um igarapé com correnteza, enchemos as garrafas com água. O mais indicado é ferver ou ter pastilhas de cloro (Clorin, Hidroesteril etc.), mas a necessidade falou mais alto e apostamos nossas fichas na pureza da água corrente…

Algumas horas depois, tínhamos avançado pouco mais de 30 km e o sol do meio-dia nos castigava duramente. Até que, após outra ponte, minha pressão caiu rapidamente. Não sei de onde tirei forças para frear a moto, descer e “apagar” no chão! Minha esposa, Elda, estava com fortes cólicas e “apagou” ao meu lado. Dormimos no meio da pista por quase duas horas, completamente desprotegidos e a mercê dos animais da floresta.

Quando acordei, não queria mais aquilo. Pensei em jogar a moto da próxima ponte e esperar a passagem de algum carro. Comentei a ideia com Elda, que, de tão fraca e com dores, chegou a achar a solução viável.

Subimos na moto e, determinados, seguimos rumo à próxima ponte. Do nada, surgiu outra torre, com os mesmos funcionários do dia anterior. Pedimos para esquentar um pouco de água e devoramos um suculento CupNoodles.

Foi mágica a energia gerada por aquela simples refeição, que nos fez decidir continuar a viagem.

NOVOS CAMINHOS

A estrada melhorou a ponto de percorrermos um trecho de 40 km em duas horas. E como nos restava cerca de duas horas e meia antes do pôr-do-sol, decidimos seguir rumo à próxima torre. Já era noite quando chegamos ao destino, mas encontramos o portão trancado com uma corrente. Por sorte havia um buraco na grade e, assim, dormimos na garagem da torre, com uma luz de 40 Watts que acendia e apagava continuamente.

Ao amanhecer, saímos bem cedo, com um objetivo ambicioso: percorrer os últimos 250 km até Humaitá (AM). No entanto, ao rodamos cerca de 5 km, um macaco-aranha pulou à nossa frente e entrou na mata. Parei a moto e peguei a máquina fotográfica para registrar aquele belo animal. Pouco depois, quando olhei para frente, a cerca de uns 50 metros, vi uma onça sair da floresta e postar-se no meio da estrada. Fiquei “gelado”, mal conseguindo notificar Elda do perigo. Mas, por sorte, o bichano não nos deu tanta importância e retornou à mata.

O dia foi passando entre solavancos, pinguelas e atoleiros. No fim da tarde, conseguimos chegar ao povoado de Realidade, vila que mais parece uma cidade do Velho-Oeste, com construções enfileiradas às margens da estrada.

Abastecemos no único posto disponível, tomamos uma deliciosa e gelada Coca-Cola e seguimos rumo a Humaitá, em um misto de trechos de terra e asfalto.

VITÓRIA

Entramos no hotel por volta das 19h00, depois de quatro dias na BR-319, repletos de lama, desnutridos e completamente modificados. Alguma coisa mudara dentro de nós. Não éramos mais aquele casal que, dias antes, havia atravessado o Encontro das Águas e apontado a moto no começo da BR-319. Estávamos diferentes – éramos quase estranhos a nós mesmos. A satisfação da superação sequer foi comentada. As palavras morreram em nossos lábios lábios, mas a sensação estava presente nos olhares que trocávamos. No curso daquela inusitada aventura, reavaliamos muitos de nossos valores – e nossa cumplicidade foi 100% reforçada.

A BR-319 não é uma estrada para motos pesadas, com bagagem e garupa. Porém, com determinação, cumplicidade e planejamento, é possível percorrê-la de ponto a ponto.

Para mapas, custos e mais detalhes, consulte o site: www.diariodemotocicleta.com.br ou nos escreva para falecom@diariodemotocicleta.com.br

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